quarta-feira, 31 de março de 2010

A prisão dos fatos







Há ao nosso redor vozes que listam as prisões metafóricas. Vejamos: estaríamos nós presos por muros altos? Dentro de carros com vidros fechados? Em nossa casa gradeada? Enfim quais as fechaduras e cadeados contemporâneos? Seriam estes extensivos ao pensamento? Há prisões para o nosso poder de refletir e ver além das aparências?

Iniciamos esse diálogo com interrogações, questões que abrem nossos sentidos para fatos tão corriqueiros que nos atravessam com uma intimidade perturbadora. Cotidianamente nossa retina tem absorvido cenas que se repetem, compactadas e anunciadas em manchetes, trazendo junto certo conformismo, dado ao fenômeno da repetição e do quantitativo. Uma verdadeira overdose de marchetes acumula-se na mídia e em nosso entorno. Temos tido tantos anúncios que nossos olhos correm pelos mesmos e não os fixa. Estamos imersos numa realidade aparente, sentimos dificuldade de encontrar a essência, a mensagem, a idéia das coisas vistas, sentidas e lidas.

Essa manifestação nos amarra a um pensamento descritivo, limitado a obviedades, ao conformismo e à rotas massificadas, sendo urgente a incursão numa nova matriz de pensamento, avançando além das manchetes e encontrando os textos ditos e não ditos, sua profundidade e amplitude. Subverter a mesmice do fato, é desmascarar a face da anualidade social, é superar a falsificação do acontecimento, é saber que o homem tem o compromisso de intervir e se posicionar no mundo.

A idéia de catástrofe permanente, de incapacidade, de alienação tem gestado bons e passivos expectadores em contrapartida a gestação do homem sujeito de seu processo. Pensar exige deslocamento de pontos de vistas, exige se colocar no lugar do outro, ouvir e refletir sobre outras interpretações. Encarar a face aparente do fato nos limita a uma visão simplista, nos orienta a ver a superficialidade do mistério e não apreendemos os acontecimentos na sua totalidade. Desejar interagir com a diversidade de leituras, da produção da ciência, das diversas abordagens, nos desaliena e nos coloca mais responsáveis, esse é o preço da consciência. Na verdade isso nos remeterá a compreendermos o nosso papel e o nosso pertencimento.

“A humanidade humaniza o mundo”. Somos nós que nomeamos, conceituamos, sentimos e reinventamos o universo micro e macro ao nosso redor. Sabemos que a formiga da idade média faz à mesma atividade da formiga contemporânea. No entanto falar do homem é falar de mudança, de reinvenção, e, sobretudo de capacidade criativa e mobilizadora de novos mundos intelectuais e relacionais.

Assim, se o homem humaniza o mundo, pensar humanamente é ser sensível à dinâmica social, a diversidade e a experiência singular do homem. É perceber os muitos prismas e possibilidades criadas e acreditar que ainda serão criadas muitas outras. De modo que não poderemos aceitar o simplismo como aspecto de conforto ou conformismo. O exercício do pensamento complexo, nos apresentará uma cadeia de elementos interligados, que por meio da análise, da críticidade e da abertura às diferenças, superaremos a suposta homogeneização do mundo.

terça-feira, 16 de março de 2010

O Império de Narciso


O Império de Narciso



Que belo! Hum, que lindo! Ainda não tenho desta cor! É novo? Não conheço! Tenho que ter, é irresistível! Está será a minha próxima aquisição! Estou totalmente seduzido, pela elegância e praticidade! É muito belo, combina comigo!
Estas expressões revelam a máxima narcísica , é o eco da nossa alma à busca pela beleza refletida nos objetos, pela satisfação dos nossos próprios desejos, ou seja, pela felicidade em possuir os objetos que me fazem belo. Nesta perspectiva, a coletividade é negada, não abrigando o sentido público, apenas o valor do mundo privado é realçado. A ética social passa a ser o desejo particular do indivíduo. Essa supremacia insana e escravizante do eu sobre o coletivo, faz dos grupos, e da cidade o lugar do EU-zumbi aterrorizado e solitário.
Temos deixado de viver um tempo humanizado e relacional, do EU-TU , para vivermos a negação do homo ludens e do Homo prosaicus , estamos no centro dos ponteiros do relógio, gastando nosso tempo entre a conquista de nossos desejos, que se configuram em adquirir coisas, em mandar e ter os desejos rapidamente satisfeitos. Num movimento de retro-alimentação do nosso narcisismo..
Estamos reféns da imagem narcisica de nós mesmos, imagem que só é refletida quando revestida das marcas, estilos, brilhos, lugares, plástica, palavras e sons reconhecidos pelo capital.
A prisão na imagem superficial nega o reflexo do profundo, fragmentando a nossa anima e nos roborizando a caminhar em circuitos de shoppings centers. Quem ainda se importa com o verdadeiro sentido da vida? Trabalhamos para proporcionar o melhor aos nossos filhos, mas não podemos dedicar-lhes tempo, pois “tempo é dinheiro”. Trabalhamos para ter uma casa confortável, mas não temos tempo para “curtir” a parrafernalha eletrônica que possuímos. Declararmos aos amigos atenção, mas não podemos dar mas do que freqüentar o seus casamento (evento), não há tempo para sentarmos juntos, jogar conversa fora, de rirmos á toa, ouvirmos o som do triangulo e comermos “chegadinhas”. Anunciamos em estatísticas uma velhice com maior qualidade de vida, no entanto acumulamos dívidas de tempo com nossa mente e com nosso corpo, sem agendarmos um médico, uma terapia, uma caminhada, observarmos o pôr-do-sol, comermos de forma saudável, enfim adoecemos ao invés de envelhecermos.
Estamos seduzidos pela fabulosa invenção do fast-food e pelas fórmulas milagrosas da fonte da juventude. Deste modo, deixamos de cuidar de do SER no presente e passamos a pagar pela renovação celular, pelos cremes, pelas injeções de botox, pela cosmética lifting. Dessa forma cuidamos somente da cápsula que nos reveste, não do sistema integrado e complexo do nosso ser.
Quanto de nós aguarda a aposentadoria para usufruir finalmente do tempo para viver as coisas boas da vida, tempo para faz o que não dava tempo. Usufruiremos do tempo ou de um plano de saúde? Plano este cheio de asterísticos e cláusulas. Impregnados de vontade própria e individualismos nos sentenciamos de tal modo que nos programamos através do espelho, como se ele contivesse a porção mais preciosa do homem, vivemos como belos narcisos. Morrendo a beira de uma imagem supervicial.
A imagem escravizada, busca expanção, ela precisa se expandir e o mundo mecânico e produtor investe num arsenal de objetos que satisfaçaam as vontades e prazeres infinitos. Infinitos porque são vazios de sentido. Exigindo cada vez mais que o homem tenha coisas, objetos para casa, objetos para o carro e assim segue numa interminável lista de “necessidades’ compráveis com a mais valia, ganhada nas horas gastas no trabalho.
O espelho nos domina e divide o relógio em dois hemisférios: Tempo para ganhar o dinheiro e tempo para gastá-lo, restando o nada para sentir a vida.
A opressão do espelho nos afasta do essencial, ou seja, do TU. Sem pessoas, também não somos pessoas. Esgotamos-nos correndo a procura de propósitos, mas a impiedosa maldição não nos conduz ao outro, ou seja, a nós mesmos.
Perdido de nós mesmos, dentro da imagem desejada de ser refletida, vai atribuindo aos outros a responsabilidade de cuidar dos nossos filhos, de cuidar da nossa pele, de conversar conosco e seguimos cegamente sem nos sentirmos, sem ver ou ouvir os outros, sem cuidar e preservar o ambiente que nos cerca.
A recusa ao espelho é dolorosamente negar a imagem até então construída, é quebrar a maldição Narcisista, e caminhar na real busca do que é essencial, que só ocorrerá como o retorno ao sagrado e ao humano, com a ousadia de viver a dor e a delicia de se reconstruir.
Assim edificaremos um novo rumo, através do nosso envolvimento na vida, nos engajaremos em nossos sonhos, enxergaremos as paisagens ao nosso redor, sentiremos indignação pelo outro e celebraremos as nossas conquistas. O nosso trabalho passa a ser um projeto de vida, cuidaremos de nós, enxergaremos nossas rugas e a reconheceremos como viva vivida, abriremos mão do instantâneo e “gastaremos” nosso tempo mastigando, andando, conversando, escrevendo, lendo, convivendo e interagindo com o TU.
O que estamos esperando? O que nos falta? È bem verdade que a falsa sensação de conforto dada pela as coisas prontas e instantâneas, bem como o prazer do poder de comandar, nos ingressa no império de Narciso, do qual já estamos acomodados. Apesar de fugas, a sensação de comodidade é real e abandona-la vai momentaneamente nos enfraquecer. Porém é inadiável negar o espelho para recomeçar é encarar o vazio assustador da nossa alma e iniciar a seu preenchimento vital.
Como tratar essa vital ressignificação? Como editar nossa comunicação como à vida? Comecemos pelo simples, do sentar e alimentar-se em família, como faziam nossos ancestrais. Se começarmos a amor apaixonadamente e começarmos a assumirmos os riscos teremos a herança dos casais talvez seja começar viver em relação como a alma das pessoas que encontraremos a libertação.
Não há facilidade nessa revolução, há sim movimento, música, garra, dor, e sentimento verdadeiro. Ingressar na vida é sentir que o fogo arde e que o ombro do homem é também acolhimento, assim o tempo será ressignificado, dando ao passado o valor da memória capturado em nossos álbuns, o valor de nossa história ilustrada com tantas gentes, bem como dando ao futuro o magnífico vazio criativo da nossa existência.
Viver o presente é apoderar-se de nós mesmo, é sentir o pulsar do peito esquerdo, é respirar sem que seja necessário comando externo: respire Fundo; é comer alimentos saboreando-os, sem estar abecedado por dietas; é amar simplesmente sem competir com a estética das modelos, ler ao invés de possuir livros para enfeitar as estantes, é especialmente aceitar que não somos Deus e que você quando brincamos de ser, somos sempre anjos de braços quebrados. Ainda é possível, sorrir como graça ao invés de representar, entrar em contato como a dor inevitável ao invés de se dopar com medicamentos, sentar com as crianças no chão e brincar ao invés da impecável organização e design dos espaços.
Enfim viver é ter as horas a sua frente e vivê-las, saboreá-las na forma que ela se apresenta, seja minúscula ou grandiosa, seja um estado de êxtase ou de dor, a “forma” é o tempo da vida, assim vamos sentir o trabalho, sentir o lazer, sentir o sofrer, sentir o falar, sentir o ouvir, sentir o obedecer, sentir o comandar. Seremos “ético e inteiro”. É na atitude singular de abraçar a forma do tempo, de olharmos a ampulheta da nossa vida, a contemplarmos os grãos d’alma que caem temporalmente, que seremos libertados e conquistaremos o poder de sentir a vida correr em nossas veias. A creditem que “Narciso acha feio o que não é espelho” e que “a força da grana que ergue e destrói coisas belas” formam a nossa privação da existência.